segunda-feira, 30 de maio de 2011

Entrevista com o ator Scott Shepherd do Wooster Group (NY) sobre Hamlet

F.: Você sabe de alguma coisa sobre a formação/educação de Hamlet em Wittemberg? Existe algum texto que fala sobre o que ele estava estudando?

SS.: Bem, eu acho que ele estudou filosofia.
Mas porque isso? Ele diz: "Existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia". E também porque Hamlet me parece muito filosófico.
O discurso dele, na verdade, não é um discurso-- o que acontece é que a estrutura, a maneira como o texto começa "Ser ou não ser, eis a questão",  tem sempre uma maneira comum de se introduzir um argumento de debate, daí um argumento filosófico.
A questão é essa e então você pode ir adiante e desenvolver o seu próprio argumento. Esse seria outro sinal que nos faz acreditar que  ele estudava filosofia.

F.: Então ele era um filósofo na época?

SS: Sim, sim. E também eu acho que isso faz parte de uma idéia muito maior, de que ele tinha uma idéia bem diferente sobre si mesmo como um filósofo, quando lhe foi dada a missão envolvendo morte, punição e vingança.
Isso era uma afronta à maneira como ele entendia a si mesmo. Ele queria ser um pensador.

F.: Teve um momento numa entrevista do Heiner Muller que agente estava assistindo, em que Heiner Muller diz algo assim como "e de repente ele se depara com o fantasma de seu pai" colocando em questão tudo aquilo que ele havia estudado até então.

SS.: Isso me parece ser uma idéia do próprio Heiner Muller. Penso sobre outras coisas agora, que quando o fantasma aparece pela primeira vez o Hamlet não está lá, então o Marcelo vira para o Horácio e diz "Tu que és culto fala com ele Horacio". Havia essa idéia de que a maneira de se falar com um fantasma era em latim e que você tinha que ser culto para falar com um fantasma. Obviamente que na peça isso ocorre em inglês. Eu acho que havia uma implicação de que uma pessoa culta sabia falar com um fantasma.
Embora também houvesse uma implicação de que os cultos não acreditavam em fantasmas.

F.: Exatamente, exatamente, interessante...

SS.: Eu tinha pensado em outra coisa... o que era mesmo... ah lembrei. Quando Rosencrantz e Gildenstern voltam da escola eles quase imediatamente começam mais um argumento filosófico. Eles falam sobre o penacho do chapéu, a sola do sapato e que a Dinamarca era uma prisão. Eles entram num vai e vem de argumentos lógicos, que eu acho que deveria ser a maneira que os jovens intelectuais da época se comunicavam. Mas é que isso tudo acaba tendo esse sabor filosófico e lógico. Eu gostaria de enfatizar que no final de um dos textos sobre a morte ele fala que "para aquele país onde ele nasceu nenhum viajante retorna", sendo contraditório pelo fato de que os fantasmas poderiam ser vistos além dos túmulos --então eu não sei qual é a explicação para isso, se Shakespeare esqueceu ou não se importou, se não serviu ao que ele queria para ficar mais consistente ou para indicar certo esforço dentro da mente de Hamlet-- onde novamente ele apresenta um sistema filosófico que é desafiado, entende, como uma idéia mais antiga que Hamlet é um homem moderno com uma maneira moderna de se pensar, que apresenta regras diferentes.
 

F.: Você acha que a peça é confusa?

SS: Bem, isso foi o que acabei de enfatizar. Existe um tipo de sugestão que ela possa ser-- sempre tem algo assim nas peças, de qualquer maneira, por exemplo, na Ofélia há essa noção dúbia de tempo, ou seja, que uma ação acontece logo depois da outra, então se você fizer as contas tudo acontece em dois dias, mas dentro da cena as pessoas estão falando como se isso estivesse acontecendo por anos, entende? Há uma noção do tempo como um todo e nenhum tempo, o que dá a entender que Shakespeare não estava realmente preocupado em resolver esse problema. Ele gosta de apresentar esses períodos de tempo acontecendo simultaneamente e ele diz "você não volta da morte", mas existe também um fantasma. Eu estava pensando no primeiro problema quando ele fala que talvez o fantasma seja um diabo e o diabo pode fazer essas coisas. Muitas pessoas vêem isso como a luta entre o catolicismo e o protestantismo-- e o fantasma voltando  remete à noção de purgatório de acordo com a religião católica  que o protestantismo argumentava contra--a idéia dessa indústria toda que você pode comprar a alma do seu pai, tipo como uma fraude da igreja. Mas qual era a pergunta mesmo?

F: Você acha que tem elementos confusos na peça?

SS: Bem, eu não acho que seja confusa, mas tem certa despretensão e disposição de deixar algumas coisas acontecerem naturalmente. Acredito que essencialmente a peça é uma tentativa consciente de reverter algumas idéias sobre vingança e tragédia. Acho que ele se inspirou em algumas tragédias espanholas como  “A Tragédia do Vingador" onde basicamente a idéia é que o herói tem que vingar a morte de alguém e aí aparecem uma série de obstáculos para conseguir isso. Ele acreditou que em tragédias de vingança não há obstáculos, e se inspirou também em uma antiga estória dinamarquesa cuja versão apresenta muitas diferenças que comprova que Hamlet estava mentindo e todo mundo sabia por exemplo que o antigo rei foi morto pelo seu irmão. Não é um segredo, conhecido do público, então todo mundo sabia que Hamlet estava em perigo. Ele também era uma criança quando a tragédia aconteceu, então ele teve que ter um plano pra se proteger evitando parecer que ele não era uma ameaça ao rei. Na versão de Shakespeare,  era um segredo do rei, então não fazia sentido, entende? Eu acho que isso contribui para criar tal mistério e um problema para ser resolvido, embora seja confuso.

F.: O que você pensa sobre Hamlet?  Como você o vê?

SS: Bem, minha opinião básica sobre ele eu acho que é a mesma que a de Nietzsche. Nietzche tem uma passagem significativa sobre Hamlet que ele diz-- eu não me lembro direito-- mas algo como que essa idéia de ter ganho uma tarefa muda todo o sentido da vida dele.

F: E é o que ele não quer fazer...

SS: Certo. Ele tinha uma idéia mais transcendental sobre quem ele era e aí  quando volta pra casa ele acaba sendo o cara que tem que matar o assassino do seu pai e isso determinará que você é. Esta é a questão básica que eu vejo. Mas há também a questão do relacionamento dele com as mulheres, nesse caso, com a sua mãe que ele passa a projetar na relação com a sua namorada. Como se toda a esperança que ele depositasse no mundo fosse centralizada na idéia das mulheres e quando isso não funcionou, toda a estrutura do que ele acreditava como certo no mundo acabou desabando.

Tradução: Simone Delgado


Scott Shepherd e Fabio Tavares


Carmen Jorge e Scott Shepherd